quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Preservação do patrimônio religioso

O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008
Benedito Lima de Toledo

Marcel Reymond, em sua obra De Michel-Ange a Tiepolo, referindo-se às igrejas após o Concílio de Trento, expõe o que delas se espera: “(...) as igrejas abertas aos mais humildes, aos mais deserdados, deveriam ser mais belas que os palácios dos reis. Nesse santuário, encontrareis vós, os mais pobres dos homens, tesouros e festas artísticas que estavam reservadas somente aos príncipes da terra.” Não é outra a sensação de que somos tomados ao ingressar em qualquer igreja da assim chamada escola franciscana do Nordeste? As igrejas “todas de ouro”, motivo de orgulho e ciúmes da população, mantêm suas portas permanentemente abertas.

A luz vacilante das velas permanentemente recriando os relevos em ouro, o aroma do incenso e a discreta presença da música fazem da emoção artística o início da emoção religiosa.

Ao lado das igrejas conventuais, as capelas das irmandades leigas são testemunhos vivos da capacidade da população civil de se organizar para honrar o santo de sua devoção. São José é honrado pelos carpinteiros; São Benedito, pelos cozinheiros; Nossa Senhora dos Navegantes zela pelos homens do mar, Santa Ifigênia, pelos negros. Todas as capelas, todavia, mantêm portas abertas, para acolher indistintamente todo o povo.

Na região do ouro ocorreu um fato imprevisto: a proibição das ordens religiosas. O rei foi taxativo: “Que se lançasse fora os padres que não tivessem ministério e à força, se de outra forma não quisessem sair.”

Sem os conventos, o poder leigo veio suprir as aspirações religiosas da população. Aos poucos, foram despontando na paisagem as belíssimas capelas mineiras, com expressões artísticas de indiscutível originalidade já no emprego de novos materiais, como a pedra-sabão, ou o surgimento de talentosos artistas nas variadas formas de expressão, à semelhança da pintura dos tetos que rompem as limitações visuais e nos remetem diretamente aos céus.

Os objetos de devoção transcendem sua finalidade primeira. Participam da vida da comunidade. A imagem de São Jorge, por exemplo, percebia soldo correspondente à sua patente e comparecia às procissões “montado” a cavalo.

Nessas manifestações se observa o primado do visual: o sacerdote protegido por um pálio apresenta aos fiéis um ostensório (coerente com a etimologia) e as famílias, por sua vez, estendem toalhas ornadas com flores no peitoril das janelas. À noite, velas e archotes criam relações imprevistas ou até dramáticas no espaço urbano.

Essa devoção é transferida aos pequenos oratórios no interior das residências, onde se abrigam pequenas obras de artistas de mérito. “Tudo na condição de reintegrar a obra de arte no seu momento histórico, reencontrando os processos que a geraram e as estruturas que o condicionaram”, como recomenda Maurizio Fagiolo.

Daí o sentido dos museus de arte sacra, onde cada peça encontra ambientação junto às suas congêneres, ocorrendo um convívio harmonioso e a perspectiva de sua preservação e restauração.

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