domingo, 10 de fevereiro de 2008

Há 200 anos chegava a Família Real portuguesa ao Brasil - Parte II

Revista CATOLICISMO - Edição de Fevereiro/2008
Entrevista com o Príncipe Dom Luiz de Orleans e Bragança

Catolicismo - Vossa Alteza sempre teve muito interesse pelos estudos históricos, e certamente terá conversado sobre esses temas com o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, ilustre catedrático e mestre de História. Lembra-se de algum comentário dele sobre a vinda da Família Real para o Brasil?
Dom Luiz - Lembro-me especialmente de ouvi-lo comentar o modo como a Família Real foi recebida no Brasil. Nosso povo, muito afetivo, estava encantado de ter um rei na sua terra, e portanto o recebeu muito bem. Já na Bahia, estava tudo preparado: o Vice-Rei, as autoridades militares, o Bispo da Bahia e Primaz do Brasil, acompanhado de todo o cabido e do clero, com a relíquia do Santo Lenho para o Príncipe se ajoelhar e adorar logo que chegasse. Os sinos começariam a repicar, e uma procissão acompanhá-lo-ia até o Palácio da cidade.

Quando Dom João desembarcou, foi recebido por todos, mesmo pelos negros, já então muito numerosos na Bahia. Os sinos tocavam. Ele desceu em terra, e a primeira coisa que fez foi ajoelhar-se e receber a bênção do Bispo. Cantou-se o "Te Deum" pela feliz chegada da Família Real. Nunca um soberano tinha pisado nas três Américas, e Dom João, que ainda não era soberano, era somente Príncipe Regente em nome de sua mãe Da. Maria I, ficou encantadíssimo de ver um povo tão bom. A coisa se passou às mil maravilhas!

No Rio de Janeiro, a festa foi ainda maior.

Segundo afirmou o Dr. Plínio, ele era um governante segundo um sistema de que gostam os brasileiros: pomposo, autêntico, legítimo, mas com uns lados muito familiares. Tratava as pessoas muito bem, com muita cordialidade, muita bondade e muita gentileza. Era mesmo muito simples, muito lhano no seu modo de viver.

Catolicismo - Na opinião de Vossa Alteza, o Rei Dom João VI fez bem em voltar para Portugal? Ou teria sido melhor permanecer no Brasil?
Dom Luiz - Dom João VI queria permanecer no Brasil. Seu plano era estabelecer permanentemente a capital do império lusitano no Rio de Janeiro, pois previa que o Brasil tornar-se-ia forçosamente a parte mais importante dele, por seu tamanho, sua população e suas riquezas naturais. Além disso, ele gostava imensamente do Brasil, de seu povo e de suas paisagens. A ilha de Paquetá, na Baía de Guanabara, era para ele uma espécie de paraíso onde podia descansar das preocupações de governante. Só voltou a Portugal forçado por uma revolução liberal em Lisboa, que punha em risco a preservação da Monarquia lusa na Europa -- e também, seja dito de passagem, a unidade do Brasil como nação. Pois as Cortes de Lisboa ameaçavam dividir nosso País em várias províncias diretamente administradas por Lisboa, ou seja, rebaixar ao status anterior um território que já era Reino autônomo.

Entretanto, ao deixar o Rio de Janeiro, Dom João VI aconselhou ao seu filho primogênito que aqui deixava com Regente: "Pedro, mais cedo ou mais tarde o Brasil se tornará independente. Toma tu a Coroa antes que um aventureiro o faça". Com isso D. João nos legou a continuidade monárquica, e também a unidade e a grandeza continental de nossa Pátria.

Em Portugal, Dom João conseguiu retomar logo o poder que estava sendo usurpado pelas Cortes e restabelecer as prerrogativas da Coroa, mas morreu pouco depois, ao que tudo indica, envenenado com arsênico por seus inimigos.

Catolicismo - Muitos autores fazem críticas pessoais, e até caricatas, a Dom João VI. Mas historiadores sérios como Oliveira Lima, e estrangeiros insuspeitos como Thomas O´Neill e o próprio Bonaparte, parecem considerar Dom João como um homem excepcional, de grande sabedoria, envergadura política e tino administrativo. O que pensa Vossa Alteza a respeito?
Dom Luiz - Estou convencido da veracidade dessa apreciação favorável. Toda a obra dele nos dá testemunho disso. É lamentável que, a partir da República, uma campanha sistemática de detração no-lo tenha apresentado, inclusive em livros escolares, como um homem desfibrado, indeciso, mole e glutão.

Contudo, apesar dessa campanha desfavorável, no subconsciente dos brasileiros a verdadeira imagem de Dom João permaneceu como tendo sido um rei grande, muito popular e simpático.

Catolicismo - Do ponto de vista do refinamento cultural e social, qual foi o papel de Dom João e da Família Real portuguesa na formação das elites brasileiras?
Dom Luiz - Foi enorme. O escritor Laurentino Gomes -- a meu ver, falho em diversos aspectos -- registra insuspeitamente que o tônus de vida aumentou muito no Rio de Janeiro, com a presença da Família Real. Um sintoma disso é que "o comércio, que [antes] só vendia escravos e cavalos, passou a oferecer pianos, livros, tecidos de linho, lenços de seda, champanhe, água de colônia, leques, luvas, vasos de porcelana, quadros, relógios e uma infinidade de outras mercadorias importadas".

Não podia ser de outra maneira. A ação de presença da Corte só podia atrair para o Rio as famílias mais abastadas e estimulá-las no afã de melhorar seu modo de vida. Com isso, por via de conseqüência, o tônus de vida de toda a população teve substancial melhoria.

Acresce que Dom João atraiu para o Brasil missões artísticas e culturais da França e de outros países da Europa. Mais tarde Dona Leopoldina viria acompanhada de outras, especialmente da Áustria e da Alemanha.

Catolicismo - Na opinião de Vossa Alteza, Dom João VI chegou a vislumbrar algo da missão providencial do Brasil como continuador no Novo Mundo das tradições e glórias de Portugal?
Dom Luiz - Creio que sim. O fato de ele ter querido que seu herdeiro se casasse com uma arquiduquesa da Áustria mostra que considerava o futuro soberano do império luso, com capital no Rio de Janeiro, com suficiente nível para se unir com uma filha da mais alta Casa reinante da Cristandade, e portanto do mundo inteiro.

Catolicismo - É verdade que, quando Dom João chegou ao Brasil, mandou invadir a Guiana Francesa como represália à agressão napoleônica, e em conseqüência disso o território do atual Estado do Amapá pertence ao Brasil?
Dom Luiz - De fato, ao chegar ao Brasil, Dom João mandou invadir a Guiana Francesa. Nosso Corpo de Fuzileiros Navais foi criado para essa missão. O Príncipe Regente previa importantes negociações internacionais após a queda de Napoleão, a fim de reordenar o mundo convulsionado pelo tirano corso. Queria ter então moeda de troca, e só devolveu a Guiana quando a França desistiu de ter fronteiras nas margens do rio Amazonas.

É preciso dizer que Dom João VI tinha na Europa três diplomatas de primeira ordem: o Marquês de Marialva, junto à Corte de Viena, que negociou o casamento de Dom Pedro com Dona Leopoldina e defendeu os nossos interesses no Congresso de Viena, juntamente com o Conde de Palmela, que normalmente ficava em Londres. Além desses dois, havia também um Senhor Britto, baiano de nascença, que em Paris deixava exasperado o Duque de Richelieu, ministro de Luís XVIII, por causa da habilidade com que conseguia vantagens para Portugal em todas as negociações.

Esses três diplomatas podiam dar o melhor de si, mesmo porque se sabiam apoiados por um rei inteligente, sagaz, com grande visão política, muito esperto, e que sabia o que queria.

Catolicismo - O que tem a dizer Vossa Alteza sobre a reação dos portugueses católicos diante da invasão das hordas revolucionárias francesas?
Dom Luiz - Os portugueses católicos reagiram heroicamente diante do invasor. Começaram por uma guerrilha, que logo se transformou numa tropa regular. Auxiliados por forças inglesas, infligiram aos exércitos de Bonaparte, na Batalha do Bussaco, a primeira derrota em campo aberto de sua história. As forças anglo-lusas, muito ajudadas pela feroz guerrilha espanhola, continuaram a luta até a expulsão dos franceses da Península Ibérica.

Catolicismo - Fazendo abstração do fato de Vossa Alteza ser descendente e sucessor dinástico de Dom João, e apenas considerando a perspectiva histórica: na opinião de Vossa Alteza, qual a grande qualidade e qual a grande carência de Dom João?
Dom Luiz - A meu ver, as grandes qualidades de Dom João foram o seu excepcional descortino político e a sua sagacidade benévola e benfazeja. Uma de suas carências foi a falta de talento militar. Um Dom Pedro I teria mandado a Família para o Brasil, tomando a frente da resistência contra o invasor. Entretanto, é preciso ponderar que Dom João deve ter tomado em consideração, para agir como agiu, o fato de saber que o fermento da Revolução Francesa também se encontrava no Brasil; e que, permanecendo em Portugal, ele se arriscava a perder aquilo que era o maior florão de seus domínios. O que aconteceu com a América Espanhola parece lhe dar razão...

Catolicismo - Pedimos licença para duas perguntas bem pessoais: Se Vossa Alteza estivesse no lugar de Dom João, como teria agido quando da invasão napoleônica? E como teria agido no Brasil?
Dom Luiz - Não é fácil responder à primeira pergunta, pois entraram então em jogo muitos fatores que, à distância, não se pode julgar com segurança. Mas no Brasil, eu creio que teria agido como ele.

Catolicismo - Por fim, uma última pergunta de ordem pessoal: quais as qualidades de Dom João VI e Dom Pedro I que Vossa Alteza mais preza e mais deseja possuir e cultivar em si?
Dom Luiz - De Dom João VI, eu quereria ter as qualidades que já citei. De Dom Pedro I, o arrojo e a coragem política e militar.

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